Como alfabetizar uma jovem de 15 anos a partir da união poderosa de James Brown, Beethoven e Malala!
O interesse das crianças e adolescentes por temas variados é o ponto de partida do “Quero Saber...”. Para atingir o objetivo final - a alfabetização e letramento de jovens em situação de vulnerabilidade - são adotados métodos e práticas diferentes para cada indivíduo, adaptados às suas necessidade e maneiras particulares de aprender. Esse processo entre jovem e voluntário garante não só a efetividade da aprendizagem, mas também a afetividade na experiência.
Andréa Pimentel, atual Supervisora Pedagógica voluntária do Instituto UNO, compartilha algumas experiências como ecoeducadora do projeto, nos apresentando a trajetória e relação que construiu com Carol:
A Carol sempre foi uma menina decidida, com uma liderança nata! Durante nossos encontros do “Quero Saber...”, várias crianças do abrigo a procuravam para pedir ajuda, pois sabiam que ela resolveria tudo.
Quando a conheci, descobri que era uma “copista”, ou seja, copiava as letras e palavras, mas, na verdade, não as conhecia e nem sabia seus significados. Por ser caprichosa e ter um senso estético muito aguçado, ficava horas copiando coisas e, por sua desenvoltura, não se percebia que ela não lia, de fato, aquilo que estava copiando.
Deste modo, nosso primeiro desafio foi que ela compreendesse a função da escrita e que seria uma forma de expressar seus pensamentos. Mas, para isso, precisava aceitar deixar de ser copista e de querer fazer tudo certo, para passar a construir suas próprias hipóteses de como se escreve por meio da tentativa e do erro. Para Carol, o erro era inadmissível.
Então fizemos vários jogos, inclusive de memorização, pois mediante tudo que ela vivia e viveu, tinha um ritmo diferente para compreender o que para os outros seria comum: o nome de cada letra e sua representação. Depois ainda precisou ter coragem para se apropriar, fazer uso da escrita e ter a liberdade para escrever suas ideias e pensamentos.
Fizemos este trabalho timidamente, respeitando o tempo que precisava para compreender que poderia escrever seus pensamentos e opiniões. Para que ela se aproximasse e acreditasse que teria capacidade de ler e escrever, procuramos temas que fossem de seu interesse e isso demorou.
O primeiro tema foi escolhido em conjunto com o grupo ao qual pertencia: alimentação e pirâmide alimentar. Carol ficou com a missão de criar uma tabela onde indicaria mensalmente quais alimentos eram mais comuns nas determinadas épocas do ano. Após nossa pesquisa coletiva, ela digitou as palavras que os representavam e, depois, os desenhou. Ficou muito linda!
No ano seguinte, seu interesse foi pela música e então viajamos por um universo completamente novo. Iniciamos com o funk, quando apresentei as canções de James Brown. Ela dizia:
- Tia, isso não é funk.
Então, lemos sobre a vida do cantor e um resumo sobre os instrumentos e influências maiores do funk. E assim, por meio de livros e pequenas histórias, fizemos com todos os outros ritmos. Estudamos samba, salsa, pagode, jazz e música clássica. Esta última lhe foi apresentada a partir da vida de Beethoven. Ela ficou encantada. Queria muito saber como ele conseguiu escrever e compor o que compôs sendo surdo. No encontro seguinte pediu que eu repetisse a história e para ouvir novamente sua música.
No ano seguinte, Carol foi transferida para outro Serviço de Acolhimento Institucional e demos sequência ao “Quero Saber...” neste novo local. Lemos os livros de Malala e Malika Oufkir. Foi inexplicável o interesse dela pela vida de ambas!
E tudo aconteceu ao mesmo tempo em que ela, como não era de se esperar, “se desacolheu”.
Juntas, Andréa e Carol exploraram o universo da alfabetização e letramento e, além disso, derrubaram algumas barreiras impostas a quem não domina a leitura e escrita para ampliar o repertório cultural e seus saberes. A educação como relação de troca, focada em valores, respeito mútuo e amor é capaz de transformar, promover descobertas e novas possibilidades.
“Convém que o trabalho das crianças não seja uma simples cópia; é necessário que seja realmente a expressão de seu pensamento.”
Jean-Ovide Decroly.
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